- Filipe Pereirinha
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Para a Filipa
Agradeço o convite que a Dra. Anabela Neves me dirigiu para vir falar hoje e aqui de Freud.
Começo por lembrar que a escritora e pedagoga eleita para dar o nome à vossa Escola, Maria Amália Vaz de Carvalho, foi uma contemporânea do inventor da psicanálise.
Existe sempre alguma dificuldade em imaginar como é que as pessoas viviam em tempos tão distantes do nosso; basta lembrar, por exemplo, que foi só a partir dessa época que a civilização ocidental passou a beneficiar da liberdade de palavra que as nossas democracias prezam tanto hoje.
Mesmo se Maria Amália Vaz de Carvalho participou à sua maneira nesse movimento geral de libertação, é a Freud que se costuma atribuir grande parte da responsabilidade por tal dádiva da palavra.
Falo da liberdade de palavra para todos, e não só para aqueles que já a possuíam. Assim, liberdade de palavra religiosa e política; liberdade de palavra para o educador, o artista e o cientista; mas também para as mulheres, vistas desde o mito de Eva como não a merecendo, por serem fonte de pecado, prostitutas, histéricas, ou mais simplesmente loucas; Freud deu igualmente a palavra ao adulto, ao adolescente e à criança da mais tenra idade.
Ofereceu ainda a palavra aos indigentes, viciosos e criminosos. E, pela primeira vez, deixou falar o homossexual, o perverso, o alucinado, o delirante, o lunático e o fora de siso. São alguns dos nomes dados aos sem juízo, aos doentes mentais, psicóticos ou neuróticos.
Mas apesar de toda a gente ter começado a falar, a Psicanálise avisou que não se pode dizer tudo. Não só por uma questão de boa educação, ou como resultado de uma censura prévia, mas porque as palavras faltam sempre, são um lençol demasiado curto para cobrir o real. Todos os nomes não chegam para dar conta das coisas. Porém, o problema mais grave é que cada um cultiva dentro de si um jardim proibido para abrigar melhor o que se fecha em copas, o dossier secreto do segredo intimo que desconhece, a que Freud chamou «Inconsciente».
O dizer tudo acabou por triunfar nas sociedades desenvolvidas. Ele está hoje omnipresente no mundo selvagem da Web (www. com). A comunicação de massa e a Internet afectaram também profundamente a ideia que fazemos da Psicanálise. Esta ficou submersa num mar de informações, num oceano de sentido, de números e de palavras, mas, em cada consulta, é o silêncio do analista que melhor ilustra o que a psicanálise tem de mais real.
Como contém algo de familiarmente inquietante, as pessoas tem procurado sair deste silêncio de morte, que é na realidade silêncio da palavra, contando anedotas mais ou menos idiotas sobre a Psicanálise. Ri-se dizendo que é uma rica profissão, porque o analista enche os seus bolsos sem precisar abrir a boca. O que assim se sugere não é apenas que o analista é um falso médico e um pseudo cientista, mas um charlatão manipulador da credulidade humana, um fulano que explora as criaturas que o procuram até ao tutano. Sem a mínima caridade.
O interessante é que daí surge a pergunta do que quer efectivamente o analista? À partida, parece que ele não deseja mais nada senão que o sujeito ouse dizer tudo o que lhe passa pela cabeça. O convite está presente na regra fundamental da psicanálise, a associação livre verbal.
Aposta, assim, nos poderes da palavra, porque espera que tenham efeitos decisivos sobre os estados da alma e os males do corpo. Mas esta libertação da fala serve essencialmente para conduzir o sujeito ao reconhecimento de uma espécie de destino, onde descobre que, por detrás de tudo o que diz, está o silêncio sobre o sentimento de culpa e de vergonha relativo ao gozo que sente.
Este gozo é mais do que um prazer, pois provoca inibição, sintoma e angústia. Ele é vivido normalmente na dor física e moral. É também um gozo solitário, autista ou que não se partilha. Freud preferiu chamá-lo «autoerótico».
Levanta-se deste modo uma suspeita sobre o altruísmo que se apresenta nos enunciados e na acção do político, do educador, do médico, do prosélita ou, simplesmente, da pessoa comum. Já o ditado popular diz que de boas intenções está o inferno cheio.
Um gozo individual, narcísico, egoísta mostra quotidianamente que mesmo quem ama duvida. O apaixonado questiona sempre o outro sobre o seu amor. Fala-se aliás muito de amor, e eu podia também dizer belas palavras sobre morangos com açúcar, e até com chantilly, como no filme «Nove semanas e meia»; mas decidi que era preferível deixar aqui uma nota aos que ainda têm sonhos cor-de-rosa, mas que não desconhecem totalmente os factos, a saber, que, paralelamente, ainda que acabando por se impor ao amor, à amizade e a outros nobres sentimentos encontra-se a inveja e o ódio. Colectivamente temos a guerra, o genocídio e mais alguns assassinatos em massa, como os ataques terroristas a Nova Iorque e a Madrid.
Foi enquanto advogado do diabo, do Mal que se repete que Freud colocou a questão de saber se não há qualquer coisa de irremediavelmente estragado na natureza humana, logo, se o sintoma não é incurável e o mal-estar na civilização permanente? A malvadez própria e alheia levaram-no mesmo a falar de uma pulsão de morte.
Insatisfeito, no entanto, com esta especulação, propôs que cada um procurasse por si mesmo, na sua análise pessoal, a verdade disto tudo e mudasse desta forma o mundo.
O mundo pode efectivamente mudar, mas quem sabe se não mudará para pior? Freud acabou por se convencer um pouco disto, o que o levou a um certo pessimismo, pois não é líquido que as pessoas queiram o bem e o belo, nem que desejem o verdadeiro.
Um estudo científico recente parece ter vindo confirmar esta faceta do pessimismo freudiano, já que concluiu que se prefere acreditar em boatos do que conhecer a verdade.
Esta preferência pelo engano e a ilusão fez com que Freud achasse que não bastava ao sujeito a busca da verdade, que era ainda preciso tentar realizar o seu desejo, para não passar a vida a sonhar, a fantasiar e a queixar-se.
Vou terminar com uma nota mais optimista, afirmando que a psicanálise pode ajudar o sujeito a ajustar as contas com o seu desejo, se conseguir transformar a relação patológica que ele entretém com o sintoma, dando-lhe gosto pela arte do encontro (ainda que haja tanto desencontro na vida, acrescentava Vinicius de Moraes), mas também levá-lo a saber lidar com a contingência dos acontecimentos e a singularidade radical de cada um, finalmente, oferecendo-lhe os meios para inventar o que ainda não existe.