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O Espaço é do Artista - Prefácio

PREFÁCIO

ENTRE ARTE E PSICANÁLISE
José Martinho

Ruth Chindler é uma psicanalista, lacaniana, que ama a arte. A prova é que não faz desta um anexo da psicanálise.

Que sabe também que não deve aplicar a clínica à arte, e que a obra de arte não se psicanalisa, ainda que possa ensinar alguma coisa ao psicanalista.

Convém que o psicanalista que ama a arte se posicione, como Ruth Chindler, entre a arte e a psicanálise. Porque é neste litoral que pode recolher, ao pé-da-letra, o saber fazer que o artista mostra com a sua arte.

Um saber-fazer único que escapa à tradição e ao paradigma reinante. E que, quando verdadeiramente original, é capaz de criar, ou melhor, de produzir um objeto que brilhará um dia, como uma estrela, no céu da cultura.

O objeto que assim se produz não é do sujeito, nem do Outro. O objeto de arte não pertence ao artista, nem ao publico.

Uma vez vindo ao mundo, o objeto de arte torna-se autónomo. Ainda que fique sempre sujeito a uma apropriação, em particular por parte dos mercadores e colecionadores de arte.

Para além do seu valor mercantil, o objeto de arte preserva o seu mistério: o olhar que lança, atrai e por vezes cega os olhos mais ou menos fascinados do espectador que o espia e aprecia.

Ruth também é fascinada pela arte. Procura as obras de arte que ama à primeira vista ou as que a deixam estupefacta; emociona-se com elas até às lágrimas e ao silêncio; compra-as sempre que pode, quando não lhas oferecem, coleciona-as com carinho, mora e convive com elas.

Procura também os artistas que fazem as obras que cativa e a cativam. Para lhes oferecer a palavra. É deste modo que abre um espaço inédito para os artistas, simultaneamente interior e exterior, onde podem falar à vontade das obras que criaram, mas que estão muitas vezes agora nos museus, nas casas particulares ou até na rua. Obras que obraram, que saíram do seu corpo animado de falantes, mas que eles perderam, e relativamente às quais necessitam muitas vezes de efetuar um trabalho de luto.

E os artistas agradecem, mesmo quando já fizeram, ou ainda fazem psicanalise. Porque o espaço de palavra que Ruth Chindler lhes oferece é-lhes muitas vezes negado noutros lugares, apesar ou até em razão da sua fama.

A maioria dos artistas a quem Ruth Chindler dá aqui a palavra são muito conhecidos no Brasil e até a nível internacional. Basta citar o nome do seu grande amigo já falecido, Tunga, escultor, desenhista e artista performático, considerado uma das figuras mais emblemáticas da cena artística do seu país. Ou o nome da escultora, gravadora e artista multimédia, Iole de Freitas, que afirma intempestivamente: “eu não amarro. Eu furo e atravesso”. Ou, ainda, o do artista visual e arquiteto Marcos Chaves, que nos diz come into the (w)hole.

Numa das primeiras filmagens de Ruth Chindler me mostrou - pois tudo o que está impresso neste livro, fotografado e escrito preto no branco, também foi filmado -, descobri um artista que ainda não conhecia na altura: Cabelo. Foi de imediato a surpresa. Fiquei francamente encantado com o que ele fazia e dizia. Com a maior das simplicidades, Cabelo mostrava, uma vez mais, mas à sua maneira, que o artista precede muitas vezes o psicanalista, antecipa, mostra, em ato, o que este anda à procura e não encontra.

Mas não descuidemos os outros excelentes artistas que Ruth Chindler nos apresenta aqui: o pintor e desenhista carioca Roberto Magalhães, que procura, com a sua arte, “dar beleza ao pensamento”. O escultor, gravador e pintor Ivens Machado, que nos alerta para o “perigo implícito no processo de criação”. O pintor, escultor e desenhista Antonio Manuel, um português radicado no Brasil, que trabalha até “que a imagem desapareça”; o fotógrafo e pintor Miguel Rio Branco, natural da Gran Canaria, em Espanha, que espraia a sua obra “entre os Olhos o Deserto”; a multifacetada artista de origem italiana, Enrica Bernardelli, que tenta cernir “o colapso do tempo”. E Antonio Dias, artista plástico e multimédia, natural de Campina Grande, representante do movimento antropofágico, com que o livro termina.

O Espaço é do Artista, Psicanalise & Arte é o livro de uma vida.

Vivam os artistas.

Obrigado Ruth.